sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Do que é feito "si mesmos"

Se eu precisasse conhecer pessoas por um questionário, para contratar funcionários, ou criar um site de relacionamentos (e ficar bilionária que nem o cara do Facebook), seria assim:


Qual o cheiro mais antigo que você se lembra? Tem sempre déjà vus? Quantas vezes você assiste a um filme que gostou? Quando viaja, compra na ida ou na volta? Tem roupas vermelhas? Como você come manga, descasca ou não? E melancia? O que pensa sobre o mês de maio? E o que acha de bichinhos que voam em volta da luz? Música ruim te enjoa fisicamente? Você chega a vomitar? Sabe falar a língua do “P”? E jogar vareta? Nadava de olhos abertos ou fechados na piscina? Qual personagem da turma da Mônica mais lembra o seu irmão/ã (caso você não tenha irmão...ai coitado/a)? O que mais te assustava quando criança, lontras ou aqueles monstros (de papelão e isopor) do Jaspion? O que faz você pensar em se matar, ter que ir a um karaokê ou a um boliche? Pizza ou pipoca com guaraná? Quantos beijos apaixonados já deu na praia? Você canta no banho? O que é pluct-plact-zum? Molha o pão/bolacha no leite/café? Qual o seu charme especial? Pôr-do-sol ou nascer do sol? O que faz uma casa ser um lar: Lagartixa ou mariposa? O que pensa de domingo a noite? Guarda ou joga tudo fora? Dorme de pijama?


Penso que saber o número de televisores (visores!) serve mais para o departamento de marketing das casas Bahia programar as próximas promoções, e o número de banheiros então? O que o IBGE acredita que isso revela? Essas pesquisas se interessam pelo atacado de gente, e eu, pelo varejo.


Queria conhecer as gentes assim, de dentro, desde sempre. Saber se a pessoa, anos antes, ficava com olhos vermelhos depois de nadar, se tinha ataque de riso e ficava mole, se fica triste domingo. Queria conhecer todo mundo como se conhece quem dorme junto na casa da avó, quem leu os mesmos livros. Que nem a gente conhece a namorada do irmão, a irmã da amiga, despretensiosa e profundamente.


Descobri que em um sebo, feio, no centro, acabou um arco-íris. Encontrei numa prateleira alta e empoeirada o tesouro: uma coleção incompleta de livros editados pela organização sueca do prêmio Nobel com capa de couro branco onde foi gravada uma ilustração do Picasso. Os livros dos escritores que ganharam o Nobel de literatura de cada ano, 1937, 1967, 1988 etc... tão baratos que senti pressa em levar comigo para que ninguém mais descobrisse a preciosidade. Nesse dia ouvi alguém pedindo um livro vermelho e outro verde. A pessoa procura o livro pela cor da capa? Não entendi e perguntei para o moço, ele me esclareceu que decoradoras compram livros para decoração, não importa qual seja, mas o tamanho, a cor. Nunca pensei que um livro pudesse ser tratado como só isso. Imaginei a casa das pessoas com esses livros-mortos lá, combinando com a cortina ou o tapete. Tem casa que é fina como página de revista de decoração, e gente que se veste como vitrine de loja. Livro-objeto morto, casa cenário, gente manequim de plástico, oco.


Sou curiosa do que está escrito dentro, da casa que tem cheiro de bolo sexta a tarde. Sou curiosa das intimidades únicas, do material que faz cada um não ser outro.


Do barro que é usado para moldar si mesmos.

por MIRABELLE