segunda-feira, 30 de agosto de 2010

De querer ser mais


Sempre que viajo me ressinto. É o primeiro e mais palpável sentimento que me acomete. Ressinto-me como uma velha que se ofende pelo tempo passar, por ser inútil, tal ressentimento é também idiota.

Sinto um ressentimento quase como uma ofensa a qualquer coisa que, de início, me escapa. Depois de muito ressentir-me fui descortinando a razão de tal disparate.

Sou pretensiosa, não me contento com o status de turista, gringo que faz aquele papel de tonto, de “haule” (na linguagem do surf, aquele que vem surfar em praia estranha, a qual não pertence)com a constante expressão de: não-entendi.

Nutro certa admiração por aqueles que, por ingenuidade ou falta de senso-de-ridículo chegam de excursão com suas barrigas brancas e bolsas coloridas, máquinas penduradas, tênis novos e se põe a tirar fotos fazendo poses e esbanjando sorrisos de satisfação. Levam pra casa canecas e camisetas (com os dizeres: PRAIA DA JOAQUINA, HARD ROCK CAFE MIAMI, NATAL) tendo certeza de terem “conhecido” um novo lugar.

Quando viajo sempre me sinto com a roupa errada, e cada lugar tem o talento de despertar diferentes tipos de sentimento de inadequação: em Floripa sente-se imediatamente a falta de musculação, a falta de pratarias penduricadas e a falta de um surfista a tira-colo. No Rio sente-se vestida demais, séria demais, até chata. Em São Paulo sente-se desarrumada, pouco descolada, caipira. Na Europa sente-se mais pra Hobbit do que pra Elfo, comparada as loiras altas e magérrimas no caminho...

Mas o sentimento de inadequaçåo pode ser suprimido por compras ou bom senso.

O ressentimento que se muda pra dentro de mim ao viajar é de ordem mais existencial e por isso, menos transformável por lojas e lógica.
Ao ver senhoras tomando água de côco no fim da tarde em Ipanema, ao avistar um cabeludo fumando um cigarro em certa varanda de Barcelona, um fazendeiro num trator quarta a tarde em uma plantação de girassóis no interior da Áustria, minha existência concebe a dimensão exata da sua limitação, meus contornos ganham espessura e percebo com força a exclusividade da minha existência.

Vivo só e apenas a minha vida, presencio exclusivamente as minhas experiências e isso me parece pouco, pouco demais.

Quando criança minha mãe me falou que eu não poderia ser rainha da bateria (essa resposta dá a notícia desconcertante de que um dia esse desejo existiu) porque para isso eu precisava ou ser famosa (antes eu tinha dito que não queria ser famosa) ou ter nascido na comunidade daquela escola de samba. Essa resposta materna foi retumbante, foi a primeira vez que me deparei com uma verdade absoluta, imutável e ainda assim trágica: eu não seria muitas coisas pelo simples fato de eu ter nascida eu-mesma e não uma outra (em outro lugar, de outra cor, sexo, em outro tempo).

Quando viajo, me ofendo com a pluralidade das possibilidades (como se pudesse ser diferente).

Talvez seja essa a razão das pessoas não viajarem (sabiamente, talvez). Elas preferem permanecer na confortável idéia de que suas vidas bastam, de que são grandes o bastante, interessantes o suficiente.

Em momentos mais chorosos essa realização chega a me parecer triste.
Sinto saudades do tempo que “Ipanema era só felicidade” apenas pela voz do Vinicius, eu não estava lá.

Tenho essa vontade de conhecer de dentro, não de foto. De ter papel principal e não ser figurante em cenários que me encantam.

Sei que isso vem de certa fome grande demais, fome de morder o mundo que nem uma tortinha.

Uma vez, na Bahia, ao ver um pescador puxando a rede no final da tarde essa mesma melancolia se apossou de mim. Minha vida era pequena para caber também essa existência de pescador, que me pareceu bonita na espessura das mãos, nos cheiros de sal, na cor que o sol deixa na pele.

Mas vendo a rede, o barco, o pescador, lembrei com força do “Velho e o Mar”, do Hemingway e me acalmei por lembrar que eu também sei (bem pouco, mas faço uma idéia) como é pescar, de como se passam os dias no mar (passei algumas semanas com Hemingway no mar).

E pensei que gosto de ler por essa razão, por curiosidade, por petulância de achar ridículo fazer pose pra foto com mochila, tênis e chapéu em pontos turísticos lotados de gente.

Ler é um jeito oficial de entrar no olhar do outro pelo lado de dentro, pela coxia (backstage) da vida e assim viver outras histórias, vestida de pele de pescador e garota de Ipanema pra quem sabe assim, driblar a pequenez de ser uma só.

Por Mirabelle