quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Minha versão da noite

“Já passou o meu momento... já me despedi de mim, nem eu me preciso... Como essa estrela já morta que ainda vemos por atraso de luz. Dentro de mim, até esse brilho esmoreceu. Agora estou autorizado a ser noite.”
(Couto, 2002, p. 238)

Não estrago a voluptuosidade da leitura de Mia Couto contando-lhes esse trecho. Voluptuoso sim. Eu não tinha certeza do sentido dessa palavra e o Aurélio só disse daquele jeito dele de dicionário: Voluptuosidade, de volúpia. Mas eu já sentia, ao ter a palavra na boca, que essa é daquelas que estouram e escorrem no lábio, deleitosa, deliciosa. Não encontro têrmo melhor para a escrita de Mia Couto, escritor moçambicano que me lembra Guimarães Rosa menos árido, mais molhado.

Li-o devagar, esquecendo-o alguns dias na tentativa de enganar as páginas que se avolumavam do lado esquerdo do livro aberto, prometendo o fim da leitura.

Lembro-me de ler “Felicidade Clandestina” de Clarice (Lispector) e ter aquela alegria que é quase choro quando a gente encontra outro alguém que nos diz sobre o que somos muito melhor do que nós mesmas jamais poderíamos um dia fazer. Ela conta que quando teve o livro tão esperado nas mãos:

“não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa.”
(Lispector, 1971 p. 18)

Li Mia Couto assim, indo passear e fingindo-o esquecer, para depois encontrá-lo, não é a toa que “volúpia” ocorreu-me, “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.” (Lispector, 1971)

No ceticismo das minhas crenças abro exceção à eles, os livros. Sei que são mágicos. Não mágicos no sentido óbvio de nos levar a lugares e blá blá blá. Sei e sempre respeitei com reverência a autoridade deles na nossa relação. Não sou eu quem os escolhe, eles o escolhem a mim, e têm seu tempo certo, preciso, não toleram adiantamentos, com atrasos são até mais indulgentes. Livros são lentos, eternos e constroem teias pelas quais se arrastam até mim. Compro-os quando isso é permitido. Não são das livrarias que eles preferem vir, alguns muito preciosos não admitem essa chegada.
Li aquele trecho do Mia Couto antes de dormir. Os livros têm seus caprichos com relação não apenas ao começo da leitura, mas à sua interrupção. Quando são lindos de doer, deve-se parar, e com reverência, fechá-lo. Quando um livro termina um grande número, se cansa. E se passamos para frente, sem saborear devidamente, eles sabem que deixamos escorrer o sublime. Dessa maneira que coloco o livro parece rabugento e intolerante. Não. Ele é sensível, e respeita os tempos.
Quando o tempo do livro e do leitor se alinham, as palavras ganham calor e recheiam balões que sobem e enfeitam dentro e fora da gente.

“Agora estou autorizado a ser noite” (Couto, 2002). Li e baixei o livro em reverência à morte mais bonita que já contaram. No sono, quando somos diretores e únicos expectadores das cenas de nossos sonhos, fiz uma assim:

SONHO: Uma mulher muito branca, magra e doente pedia remédios em inglês, como uma viciada envergonhada e agressiva, exigia o que precisava. Ao tomá-los, dormia. De sono desmaiado morto, mas acordava, e repetia o suplício de pedir remédios para dormir, e acordar, e não conseguir morrer. O cenário muda para um canto de uma varanda grande, três mulheres, a doente inclusive, saem de debaixo do telhado e olham o céu a noite, nublado.

Uma nuvem desce, a altura do alcance dos braços, na descida a nuvem se torna roxa, e se destaca no preto do céu. De nuvem vira fumaça, não fumaça quente, fumaça de nuvem, molhada, fria. A névoa roxa gira e forma uma flor, espécie de copo de leite. Uma das mulheres levanta o braço e ao alcançar a flor, esta se faz mais flor, em carne florida e não mais névoa. A mulher entrega a flor à doente. A mulher doente faz o mesmo gesto, estende a mão e alcança a haste de outra flor. Essa flor sobe levando-a consigo, ela não pesa. Está autorizada a ser noite.
Por Mirabelle.

Mia Couto, 2002. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. Cia das Letras.
Clarice Lispector, 1971/1991. Felicidade Clasndestina. RJ: Francisco Alves.