Sempre considerei frases do tipo:
- Nasci na época errada;
- Eu morei não-sei-onde na minha outra vida;
- Eu deveria ter nascido na...(China, França, Austrália etc)
Uma grande babaquice.
Babaquice proveniente de sentimentos esnobes de pessoas que se consideram dignas de pertencer àquele lugar que segundo seu modismo do momento, é LEGAL.
O lugar da moda difere segundo o grupo, idade e ambiente de convívio do sujeito.
Os da yÔga (tem que falar o Ô como em vovÔ para ser da turma) têm a Índia como ambientação de suas vidas passadas, os do surf juram que deveriam ter nascido no Havaí, ou na Austrália, adolescentes que acabaram de descobrir a maconha e o Jimi Hendrix choram por não terem ido ao Woodstock e todos os adeptos dos cristais-gnomos-Alto Paraíso- terapia de vidas passadas- e- afins declaram que foram guerreiros nas cruzadas ou uma princesa que morreu jovem a espera do seu amor (ou alguém já viu alguém fazer regressão e voltar contando que foi um açougueiro em sua mais recente encarnação-antes-dessa?).
Enfim, eu pensava que essa identificação com qualquer outro lugar que não o seu, era somente uma fuga alucinada e maníaca de pessoas descontentes por residirem em lugares tão cheios de glamour e história quanto Sorocaba, Pato Branco ou Louveira.
Pode ser que muitas dessas frases venham de modismos.
Mas existem mesmo lugares nos quais a gente chega e tem a impressão de pertencer mais àquilo do que à casa onde crescemos. Lugares novos, até então desconhecidos que conversam com partes nossas tão intimamente como se fossem amigos desde a segunda série (ou será de outra encarnação?).
Pode ser um país, uma poltrona, um sotaque, uma certa luz que dá a sensação de ter voltado pra casa.
Conheço uma pessoa que se sente em casa em todos os lugares onde têm onda, surfar é estar em casa. Essa mesma pessoa se sente em casa em um castelo medieval e num seringal (é, essa pessoa é meio estranha!).
Outra pessoa se sente em casa no Ceará e em todo lugar onde o sol escancara e colore tudo de amarelo-luz ou onde tenha um bom Milk-shake de chocolate (o bom é aquele no qual o canudo não afunda).
Era fim da tarde de fim de agosto, chovia uma chuva fina e fazia mais frio que os dias anteriores, uns 9 ou 10 graus. A moça da recepção de certo hotel em Praga, baixinha e ruiva, com um inglês formal e cheio de arestas apresenta uma biblioteca, dizendo que fica aberta 24 horas.
Uma sala de tamanho médio, toda aconchegada em carpete, estantes, papel de parede e cortinas. Janelas que começam no quadril e acabam no teto, paredes grossas como um armário. Presos nas laterais das estantes, pequenos abatjours estendem ao redor de si uma auréola mais clara, mas permitem que carpete, estofado e cortina guarde um tanto de luz para si, deixando o ambiente âmbar e gentil.
Nas prateleiras, livros recheados de palavras formadas por letras unidas de forma surpreendente: százszor, szükség, különbözö.
Tudo é verde e vermelho, verde e vermelho sérios, senhores, não aquele verde jovem, aberto, tagarela, um verde que lê, sentado, fumando cachimbo. A cortina pesa pra baixo. Algumas poltronas em xadrez.
Nessa biblioteca que era toda idosa (o hotel era de 1897), toda em uma língua absolutamente estranha, me senti em casa.
Pensei nos ambientes claros e abertos, clean, minimalistas, brancos, com pés direito de 3 metros presentes em todas as revistas de decoração no Brasil e fiquei com frio.
Quando criança, eu pedi em alguns natais uma biblioteca, como a que a Bela ganha da Fera (no desenho da Disney). Eu não fui uma princesa tcheca na minha outra vida. Mas conheci a biblioteca que mais se parece com a que morava dentro de mim e eu nem sabia.
Por Mirabelle