sexta-feira, 25 de setembro de 2009

De-vez-em-quando


Nunca tinha me dado conta sobre algo da língua. Língua de linguagem. O tempo condicional é o futuro visto do passado e uma potencialidade ou irrealidade virtual. (Não sei se no português é assim, porque descobri que não aprendi nada de gramática do português quando fui estudar outra língua). A linguagem filosofa, organiza o tempo, pessoas, os sexos, as intenções futuras, os desejos possíveis, mas irrealizados. Tente falar em uma língua que não se sabe bem algo como: Se eu não tivesse ído, você estaria aqui hoje? “Tivesse”, “estaria”, hipóteses, perguntas que pertencem à uma irrealidade suposta, passada, mas não acontecida. Suposição ilusória sobre o futuro, a partir do que não foi, mas poderia ter sido.


Vi dois bouquets sendo levados para serem entregues hoje. Queria ganhar flores, acho que amanhã vou ganhar de mim mesma. De manhã vi um bouquet de rosas vermelhas... terá a noite sido boa? Ou muito ruim? As vidas que passam por mim na calçada, de dentro das janelas e pelas ruas que vejo e nas que nem andei me encantam a um ponto de vertigem.


É esse frio na barriga que se aninha em um canto de mim numa rua vazia domingo a tarde, a procura do apartamento de uma amiga. No caminho vejo alguém na varanda que fuma um cigarro, plantas no chão, em vasinhos, uma bandeira amarrada, música lá dentro. Nunca vou molhar essas plantas, nem conhecer o cheiro de tantos cabelos. Viver só a minha vida me depara com uma pequenez estonteante.


Hoje estive alerta e bem disposta pela manhã. Dormi umas 4 horas e estive muito melhor que ontem. Senti o cheiro do metrô vindo de baixo numa rua e senti uma saudade do agora.


Em poucos momentos estive neles de fato a ponto de dimensionar, de dentro, o tamanho que tinham, se vistos de longe. Geralmente precisamos de distância para enxergar. Como quando se conversa perto demais de alguém e o olho desfoca, aí a gente se afasta um pouco para ver melhor. Para isso talvez sirva teatro, filme, livro, para ver com outros atores a história que há pouco tinha a nós mesmos como personagens.


Quando podemos encenar e assistir ao mesmo tempo dá essa saudade de agora. Visitou-me agorinha uma parte de minha poesia preferida de criança. Morava em um livro de edição feia, cores baratas, acho que só laranja e azul, uma ilustração no canto da página mostrava uma estrela do mar na areia. A poesia montava uma cena de pais e filha caminhando na praia e pegando conchinhas, ao aparecer a primeira estrela, aparece também para mim, as palavras da poesia. A mãe diz à menina para fazer um pedido, e a criança pede:


“Primeira estrela que eu vejo, disse ela com suave acento, conserva tudo igualzinho como está nesse momento.” (Não sei de quem é)


Eu-hoje concordo com o que eu-ontem pensava ser felicidade, essa constatação do sublime, ser atriz e espectadora do instante. Os anos se passaram mostrando que a criança sabia que se nada precisava ser desejado, era porque tudo que se queria estava ali. Talvez o tempo só tenha acrescentado à cena ingênua e linda da praia, a promessa doída da saudade.

Porque crescemos, e vamos vendo que ao entardecer dos dias, descartar uma possibilidade de mudança (desejo) quando uma estrela aparece, é coisa que se de-vez-em-quanda na gente.

Por Mirabelle

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  2. Adorei o verbo "de-vez-em-quanda" na gente!!!

    Hum... e o blog da Carol Nogueira também é muito legal, ela também tem carteira de motorista das palavras.

    Bj
    Paula

    ResponderExcluir
  3. Minha filha, a senhora está aprendendo depressa com esse tal Mia Couto, hein? :o) Adorei! Um beijo bem grandão, pra você e pra Paula (vim te ver e ganhei um carinho, eba!).

    ResponderExcluir