quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Não devia...


Sou do tipo de pessoa que sempre morou em casa.
Antes eu desconfiava, agora tenho certeza.
Existem as pessoas-casa e as pessoas-apartamento.
Talvez elas sejam feitas de material diferente.

Existem as pessoas biflex (no sentido imobiliário).
Eu pensei que poderia ser uma delas.

Mudei-me para um prédio a despeito de todas as minhas intuições a respeito do que significa, para mim, um LAR.

Eu achava que isso estavam relacionado à silêncio, tranqüilidade, quietude e um sentido único de privacidade e unicidade que uma casa proporciona.
Uma casa com terra onde se põe o pé, nem que seja só no fim de semana, uma varanda para onde se sai quando dentro aperta e sufoca.
Lugar onde se fica dentro, mas também se sai para ver o céu, olhando de baixo pra cima, tombando a cabeça até abrir a boca (de um apartamento não dá para olhar para o céu assim, pra cima, só na diagonal).

Eu achava tudo isso, mas desconfiava que essas coisas pudessem ser daquelas tantas que a gente pega de pai e mãe e depois descobre que não nos pertence. Ao longo do tempo vamos devolvendo na lojinha parental capas e casacos pesados com os quais fomos vestidos.

Na minha casa (de criança) só tinha chocolate, tudo de chocolate. Doce com fruta era quase uma heresia na casa de chocolate, mas descobri que na minha casa cabe chocolate e cocada, sorvete de limão e torta de morango. Descobri também que gosto de cortina, de parede colorida, mas continuo gostando de sentar no chão (e não no sofá) na frente da TV e de pão com mel (tem coisa que fica sendo nossa mesmo!).

Bom, foi com esse espírito des-prendedor que encaixei sofá, tapete, panela e vontade de céu no conceito moderno e urbano de lar.

Eu já ouvi falar que dormir com a TV ligada pode causar convulsão (em pessoas propensas a isso, ou epilépticas mesmo) pelas ondas que entram no cérebro adormecido.

No momento me pergunto se é possível um ser humano convulsionar pelo repetido e ininterrupto APITAR do APITO que APITA cada vez que um portão (do meu prédio) abre e fecha (isso quando o controle funciona e o digníssimo condômino lembra de apertá-lo para fechar).

Meu prédio tem 2 portões, eles têm luzinhas com apitos que apitam muito alto. Na rua devem ter mais uns 5 ou 7 prédios em cada lado, cada qual com seus portões que também apitam, buzinam e esforçam-se por causar danos cerebrais nos ouvintes.

Fora todo aquele sentido de lar que os porteiros lutam em te proporcionar ao dizer que seu cachorro não pode encostar as patinhas no chão, que seu carro está estacionado fora da linha, que a grama, o jardim não são para serem pisados ou usados de maneira nenhuma, que um pano de chão da lavanderia está para fora da janela...enfim, todo esse clima de privacidade, de um-lugar-para-você-chamar-de-seu que só um prédio com regras condominiais, síndico e tal para te oferecer.

Sei que as pessoas se acostumam com apitos, com não ver o céu, com dormir com barulho de TV e nunca ficar com seu silêncio. Sei que as pessoas se acostumam a não ouvir a chuva descendo pela calha e chegando na terra.

Aliás o ser humano se acostuma a quase tudo.

Sei que a gente se acostuma... mas não devia.
Por Mirabelle

Imagem do filme Wall-e. Animação da Disney e Pixar que imagina uma espécie de futuro "Admirável mundo novo" (Huxley) em que as pessoas não andam, "comem" shakes e conversam apenas via tecnologia. De arrepiar!

Um comentário:

  1. Lindo seu texto. Tbem sou casa, como vc. Na última mudança, qdo no desespero da urgência quase fui para um apto, minha intuição se transformou em sensação nítida de sufoco, a certeza de que NAO NAO POSSO MORAR CONFINADA. E aqui, na casa com graminha que se pode pisar e deitar e rolar, vc será sempre bem vinda. Bjos querida!

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