sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Colo azul

Tem coisas-pessoas que sou eu quem olha, e essas não me contam delas, sou eu quem tenho que inventar. Eu almoçava no restaurante italiano perto da aula e entrou uma senhora, devia ter a idade próxima a da minha avó, uns 70 anos, ela tinha olhos bem azuis e o cabelo arrumado daquele jeito das senhoras, fofo, que nem algodão-doce azul. O cabelo cinza iria ficando azul pra combinar com o fim da vida? Se as cores de dentro da gente são alaranjadas quando quentes, somos azulados quando esfriamos. Mas essa senhora não estava fria, ela vinha fazer uma reserva para o jantar daquela noite: Madame Fulana, uma mesa para dois as oito horas. O gerente anotou e ela agradeceu saindo sorridente.
As oito horas daquele e de vários outros dias fui tomada pela delicada tarefa de bordar em pensamento os pontos daquele jantar. Um velho amigo, um amor, um filho, uma neta?
O desejo sem saída, que é quase obrigação, de cercar cor, cabelo e hora com letras juntinhas e separadas, afim de fincar estacas pelas quais passa um fio de ritmo com vírgula e respiração amarrando ali dentro o que pediu, ou o que escolhi, para ser contado. Deixar de fora o que não é e chegar o mais perto da coisa antes dela escapar.
Não tenho dúvida, na minha fantasia bonita- é minha e então enfeito-a como fazia com as Barbies- que aquele jantar foi bom, que aqueles olhos azuis profundos (pois são fundos os azuis escuros) sorriram no espelho ao afofar o cabelo de algodão-doce, que ela até chegou um pouco mais cedo (porque gente mais velha não se atrasa, com exceção do meu avô), e que seu/ua acompanhante chegou uns 15 minutos atrasado/a, desculpando-se, e os olhos azuis desculparam, porque os mais velhos sabem que os mais novos se atrapalham com o que não importa.
E àquela senhora que vi, peço desculpas respeitosas para pedir emprestada sua noite e convidar minha avó para jantar, que tem olhos azuis também, mas não são profundos desse jeito porque também têm um tanto de cinza, o que os faz um pouco mais mansos e tristes, mas não triste de chorar, triste sem barulho, só triste, de tristeza acalmada.
A minha avó tem o melhor colo do mundo. Todos os netos, um a um passaram por ele, os cachorrinhos e netos-primos também acalmaram seus choros, medos e sono ali. E sentiram uma calma chegando como chega a espátula do bolo na cobertura branca de chantilly. Minha avó não faz barulho, e também não se mexe, nunca gostei de quem barulha para respirar. Sua imobilidade faz a criança-água em seu colo parar de ondular, suspirar e adormecer.
Como os netos e cachorrinhos, os livros estiveram sempre no colo dela. Eles também, quem sabe, gostem de escorregar no rio de prateleiras, livrarias e mãos desajeitadas para o canto manso, desapressado do colo azul.

Minha avó- lê mais ou menos um livro a cada duas semanas, tem 73 anos, lê assim desde os 14, ela conta que com essa idade lia alguma revista, como “Capricho” da época e que seu pai propôs uma troca, ele assinaria o Círculo do Livro (espécie de biblioteca que chega em casa com um livro surpresa) e ela receberia um livro por semana, ao invés de ler a revista. Resultado: é a melhor indicadora de leitura, principalmente os clássicos, as coisas novas, vou eu mostrando para ela. Ela tem gosto apurado e aprecia os textos escarpados de Graciliano Ramos (“Angústia” é um dos seus favoritos), Tolstoi e outros que foram revoluscionários: Henry Miller, Simone de Beauvoir.
POR MIRABELLE

Excesso de bagagem



A moça do balcão do check-in fala (em outra língua) o preço da taxa pelo excesso de bagagem, finjo não entender porque não posso acreditar em tantos euros por tão poucos quilos. Penso em deixar a mala porque nem vale tudo isso o que tem aí dentro, fica mais barato comprar em ouro esses quilos.
Tenho vontade de chorar e uma culpa ardida ameaça fechar a garganta.
Sei que não são só os euros que doem. Alguns momentos trago na mala com o peso e preço de um tesouro, como Prévert eu queria saber pintar com pincéis de letra aquela noite sozinha, o taxi voltando, o banho de manhã, o corpo surpreendentemente desperto, vivo. As primeiras noites quentes quentes sem hora pra dormir quando procurei no youtube coisas que eu não sabia que lembrava de mim, e foi como me reapresentar e gostar de quem eu conhecia, porque tínhamos (eu e mim mesma) ouvido as mesmas músicas e ido aos mesmos shows.
Quanto valeria se algum dinheiro pagasse, dançar forró pelada sozinha, depois do banho, girando os pés cansados e a cabeça sonolenta e sorridente do chardonnay do supermercado de E$ 4,30, luz apagada num espaço de 6 metros quadrados. Voltar de calça branca de linho pelo metrô pulando na escada rolante de dois em dois degraus só pra dar certo com a música do ipod, alta, som alto, salto alto no alto da sexta a noite. Quanto valeria em dinheiro aquele arrepio triste e emocionante com quem me encontrei na frente do “Beijo” de Rodin ao reparar que a mulher se entrega, desaba sobre ele, e ele, homem assustado, medroso, mal encosta a mão direita no quadril dela, costas retas, músculos tensos, ela beija, ele é beijado.
Na cozinha da casa de portas coloridas as conversas sobre nuvens, Ronaldo (o fenômeno), cerveja quente, Guimarães Rosa, tarô, direito civil francês, resgate aéreo, poesia da capoeira, super aceleração de partículas (era isso?), Harry Potter, Lacan, amores que estão longe, fofocas dos de perto, e o maranhense que acordava environ midi (por volta do meio dia) cabelo pra cima, bermuda vermelha, mão na barriga, pé no chão, fez um suco de laranja e: “Esse é pra você!”.
Tem uma coisa de dentro de gente que parece que dormiu na rede e acordou sem pressa, que é um jeito de fazer o mundo parecer uma varanda ensolarada. Laranja que nem o suco que me ofereceu.
Só 14 Kg a mais? Eu trouxe muito mais, mas essas coisas não se deixam, assim a toa, pesar em balança.

Prévert- Jacques Prévert, poeta francês conhecido por ser o poeta do cotidiano parisiense, Pablo Picasso falou sobre ele: “Jacques, tu ne sais pas peindre, mais tu es peintre.” (Jacques, você não sabe pintar, mas você é pintor).
Chardonnay- tipo de uva que faz um vinho branco leve e frutado
Taxa de excesso de bagagem da Air France: E$ 15,00/quilo extra. (pra ter uma idéia uma mala média pesa 20kg, o que dá E$ 300,00)
Ronaldo- fenomenal, e ainda mais no Corinthians!!!!
Lacan- psicanalista francês (1901-1981)
POR MIRABELLE

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A vida no campo e a vaidade feminina “a nível de” menos um


A mulherada muito evoluída espiritualmente e desapegada do corpo que me perdoe, mas este fim de semana tive uma experiência chocante. Talvez seja coisa desse continente velho-mundesco, berço entre outras coisas da revolução de maio de 1968, com tantos meses de inverno pra deixar o corpo tapado debaixo de um monte de pano (e poder desencanar sub-repticiamente de depilação, pedicure, celulite e até de alguns quilos a mais), talvez seja algo de países mais evoluídos com uma maior renda per capita, yo qué sé. Ou deve ser um efeito da onda de calor que passou por aqui e devastou o senso estético das minhas anfitriãs.

Minha aventura foi assim: lá vou eu, o queridão, os dois filhotes, todas aquelas tralhas de que você precisa quando viaja com criança pequena debaixo do braço, passar uns diazinhos no campo, num pueblo, a convite de um casal de amigos, que também tem uma filhinha de dois anos. Fomos de trem lá pro cafundó do cafundó, num vilarejo de uns 500 habitantes (sim, o trem chega até lá perto do cafundó), na casa em que esse casal de amigos aluga num pique comunitário com mais seis famílias. Explico: é um casarão medieval do século XIII, com seis quartos grandes e muito, muito espaço para as crianças ficarem soltinhas na delas, na piscininha inflável do quintal, correndo pelo salão, brincando na varandona, pastando no jardim ou o que elas bem entenderem. Cada família tem seu quarto e as áreas comuns são compartilhadas.

Nesse ambiente de “vida em comuna”, onde refeições, manutenção da casa e vigilância dos rebentos são feitos coletivamente, sou recebida por duas matriarcas além da minha amiga. Pessoas fofas, legais mesmo, com um papo e uma cabeça ótimos, profissionais liberais e excelentes mães. Mas com uma determinação por cultivar os pêlos das axilas como eu nunca vi na minha vida.

Sei lá, a gente ouve lendas de como na Europa existe mulher que tem uma tarântula embaixo do braço ou uma mata atlântica na genitália. Mas, no mês de agosto e com o calor que está fazendo eu me pergunto: em pleno verão, minha gente? Eu digo “determinação” porque não é que fazia três dias ou uma semana que a moça não via uma gilete, é que pra chegar naquele estado era preciso de ao menos um mês de cultivo de pêlos. Gentem, um mês! Nem meu queridão tem um sovaco peludo daqueles.

Mas a coisa não pára por aí. Fosse apenas esse detalhe, é óbvio que faço um esforço pra relevar. Outras latitudes, outras culturas, do diferente se aprende e, enfim, eu também devo ser um bicho muito estranho aqui de vez em quando. Vamos por partes: some-se a isso que as matriarcas não faziam as mãos (as unhas delas pareciam as de um moleque de 12 anos, nem pra deixá-las assim, crescidinhas e lixadinhas, era que as unhas estavam do jeito que estavam, num pleno estado de inércia). Sobre os pés, então, dispensarei comentários. Ok, ok, estávamos no campo, num ambiente rústico, realmente ninguém ficava desfilando um pezinho bonitinho em uma sandalinha meiga, eles estavam sempre poeirentos porque ali essa coisa da natureza era um pouco implacável. Além do mais, entendo que nesse ambiente o cuidado com os cabelos não seja prioritário e parecia que não era um problema ter um monte de fios brancos aparecendo (sobre isso não posso discorrer, pois graças a Deus ainda não tenho que me preocupar com a questão), mas vamos acrescentar mais um pouco de informação visual: a matriarca nº 1 usava um look curto estilo “rapei e deixei crescer” e a matriarca nº 2, “tá comprido e ponto”. Nada de uma fivelinha, um lencinho, uma tiara verde-limão ressurgida dos anos 80, um detalhe que fosse (ou que revelasse alguma cosmética mais específica que o creme rinse de cada dia).

Mas o choque veio mesmo o dia que fomos à piscina do pueblo com as crianças.

Não bastasse o cenário descrito anteriormente, as virilhas faziam jus às axilas. Mas o que mais me chocou, que me deixou consciente do quanto aquela militância podia chegar até a medula, era o biquíni que a matriarca nº 1 estava usando. Além de ser um biquíni com a parte de baixo maior que a que minha avó usa pra ir na praia, parece que ela fazia questão de pegar o mais velho, desbotado, sem elástico e acabado do guarda-roupa. Eu fico me perguntando como pode ser que a sensualidade de um ser humano seja negada a tal ponto, como alguém pode ter uma vaidade tão próxima do zero. As roupas que essa matriarca usava também eram as mais desbotadas, sem elástico e surradas que eu já vi. Devo ter perdido alguma coisa porque não entendi muito bem apologia do quê ela estava fazendo.

Eu quero deixar claro que não sou nenhuma perua, nem mesmo patricinha eu me considerei um dia. Mas acho que tem limite pra tudo. Estar sempre e 100% impecável é difícil e uma meta almejada apenas por mulheres muito mais perfeccionistas e determinadas do que eu, afinal, o corpo feminino exige altíssima manutenção e a maioria das mortais tem seus deslizes estéticos aqui ou ali. Mas querer juntar todos eles de uma vez só por opção (porque se tratava da opção da matriarca, não da falta de opção, pois ela bem que poderia lixar as unhas, passar uma gilete na tarântula ou escolher outras roupinhas um pouco menos velhas se quiser), eu confesso que não entendi.

Fiquei pensando se o maridão da matriarca era uma figura assim tão castradora dessas que não suporta que os outros achem a mulher dele bonita (tipo o cara que não deixa a namorada usar mini-saia), mas analisando o sujeito ficava bem claro que a coisa não ia por aí. De repente, encontrei uma hipótese que pareceu encaixar: era uma prova para ele. A matriarca estava testando o verdadeiro amor do sujeito por ela. E cheguei à conclusão de que o amor do cara era real, e por isso aquela família com seus dois rebentos parecia tão feliz.

Gostaria de dedicar este post às matriarcas europeias muito queridas que me receberam estes dias com suas tarântulas na axila e esse padrão de beleza de mulher do mato medieval que ainda não acabei de assimilar e, claro, aos admiráveis indiozinhos que, apesar da vontade do europeu em dizimá-los, acabaram ensinando o colonizador a tomar banho todo dia, que essa história de pêlo não tá com nada e que é importante sim usar um colarzinho e um adorno mesmo (ou sobretudo) quando se trata de andar pelado. Viva a Pindorama!

POSTADO POR darling, darling

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

"Qu´est-ce qu´on fond, un peintre?

C´est un collectionaeur qui veut se constituer une collection

en faisant lui-même les tableaux qu´il aime chez les autres."

P. Picasso
(O que é, no fundo, um pintor?
É um colecionador que quer constituir para si uma coleção
fazendo ele mesmo os quadros que ele ama dos outros. )
- tradução livre -

Escrito no museu do Picasso em Paris , na parte em que estão expostas as obras
que faziam parte de sua coleção particular.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Eu e ela

Levei cinco anos, um divórcio, um novo amor e dois filhos pra chegar até aqui. Também alguns tapas na cara, a fundação de uma empresa, boa doses de sonhos que começaram a ser semeados com audácia e suor.
Aqui é um lugar do outro lado desse charco chamado Atlântico onde eu finjo que me acostumei com duas línguas parecidas com a minha. Há que tecer laços invisíveis, esticá-los como teias de aranha para abarcar tanto quilômetro entre alguns afetos.
Ela, Mirabelle, estava aí muito antes de tudo isso. Eu voei e ela não veio junto, ou ela voou e eu não fui junto. Pois as pessoas voam em várias direções. O mais incrível não é o tempo que faz de tudo que fizemos juntas, é que ela continua ali me chamando por cima do muro de vez em quando só pra falar oi ou perguntar se já testei o novo alvejante como se fôssemos duas senhoras vizinhas há séculos.
Agora chegou a hora de estender o varal. Ela segura uma ponta e eu a outra, e aos poucos vamos fazendo correr essas notas sobre o abrumador ou o hilariante que há do lado de dentro de nós até chegar do outro lado.
Pode ser que algum transeunte olhe pro alto e, por acaso, caia aqui.
Sejam bem-vind@s.

POR WOMBER WOMAN

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

No vaivém dos seus quadris/metafísica da beleza



(Lendo “O retrato de Dorian Gray”) Meu livro ficou bobo agora, Dorian Gray não cresce, passam-se os anos e ele tenta colocar tudo o que é tipo de porcaria disfarçada num buraco sem fundo que não é preenchido.
Nesse sentido o livro pode ser interessante. Um rosto que não se marca pela vida carrega um homem que atravessa os anos da própria história isento, desobrigado, inocente. Dispensado de pagar, em rugas, o que vive, joga o jogo como se fosse café com leite. A beleza eterna não tem nenhuma graça.

Seria isso a beleza? O que é efêmero? O que passa? Vi uma vez um programa na TV com uma mulher que treinava dançarinas de boites, aquelas que descem girando naqueles paus, essa senhora- ela já era uma senhora- disse que era importante não parar de se mexer, porque nenhuma mulher fica bonita pelada parada por mais de 5 segundos. Achei esse comentário brilhante. Essa senhora do entretenimento adulto sabe o que é beleza. Sabe que não tem nada a ver com pernas e bunda.

Uma mulher nua, imagem da beleza em muitos sentidos, da beleza clássica, erótica. Um novo amigo (que espero que um dia se torne velho amigo) me disse, com seriedade e quase com sofrimento: “Você não sabe o que é, para um homem, uma mulher bonita”. Era grave seu semblante e não foi feito para impressionar, essas palavras soaram como descobertas para ele mesmo e eu senti que cheguei o mais perto que já estive de tocar essa beleza que é quase dor masculina. Mas mesmo assim, uma mulher pelada parada por muito tempo pode parecer um corpo. Intriga-me que uma pessoa passe a ser um corpo depois que morre: “16 corpos foram achados na região onde caiu o avião”. 16 corpos... de pessoas.

Quando a notícia sai assim penso que de fato, deixando toda a discussão religiosa de lado, não somos só corpo, se quando morre-se viramos corpo é porque alguma coisa mudou, saiu, deixou.
Então, tudo o que existe, entre um corpo vivo, que é metáfora de beleza e a imagem azulada e macilenta da morte, é o movimento.


- “O retrato de Dorian Gray”- Oscar Wilde, escrito em 1891 (como versão para o livro). No momento em que escrevi isso estava em uma parte em que o livro, tenho certeza que como previsto pelo autor, dá uma estacionada, mas depois retoma o fio da trama de forma envolvente e brilhante. Adorei.

- Macilenta- sempre penso em macilenta quando penso em morte, e devo isso à incrível “Noite na taverna” de Álvares de Azevedo (1855), que li sentada no chão da classe, como propôs a professora de literatura no segundo colegial.

POSTADO POR MIRABELLE