terça-feira, 13 de setembro de 2011

Sobre o Dom Capoeira e a Miss Universo



Ir ao Poupatempo refazer RG pode ser tudo, menos uma economia de tempo. Ainda bem que, como alienígena recém-chegada, ainda consigo achar alguma graça nos aprendizados antropológicos do dia a dia. Por exemplo, observar o ir e vir dos senhores que ainda usam chapéu, um prazer secreto. Nas quatro horas que passei lá (uma e meia das quais em pé numa fila, esperando que chegasse minha bendita vez), pude dedicar-me a outro de meus passatempos favoritos: roubar histórias para saboreá-las e recontá-las depois.

Estou lá sentadinha no meu banco (e no de outros mais de dez neguinhos) quando se instala a meu lado um senhor bem apessoado, moreno, charmoso até, com seus 50 e tantos anos e cabelo grisalho. O senhor começa a falar no celular e eu, discretmente (que feio!), espichei a orelha e fiquei ouvindo. Eu e a torcida do Flamengo, diriam alguns, naquela densidade de umas 10 pessoas por metro quadrado. Mas confesso que coloquei mais atenção no telefonema do que mandaria a cortesia.

- Então, Leonardo. Mede o ângulo, dispara o temporizador e guarda a medição pra mim. Isso vai dar umas 17 estacas.

- ...

- Não, não. Tô meio aperreado aqui no Poupatempo, acho que daqui a umas três horas eu consigo sair. Mas olha, daqui uns dois meses vou ligar pra você que vai ter trabalho lá na construtora. Estão precisando de topógrafo e assistente de topógrafo. É. Vão fazer um condomínio, compraram uma área de 500 mil metros. Vai ter trabalho para uns dois anos.

- ...

- Você não sabe da última. Sabe que o patrão queria me mandar pro Amapá? É, Amapá. Disse que ia me pagar seis contos. Limpos. Mas pra que eu vou querer ir pra lá se não está ruim aqui? Tá louco que eu vou deixar a minha mulher? Só tenho uma só, a única que Deus me deu, como é que eu vou largar ela assim! É ruim, hein?
- ...
- O Tiago? O Tiago ganha quatro mil. Ele tá lá, fazendo as coisas dele em Autocad. Eu? Hmmm. Eu ganho três e quatrocentos. Mas é que eu não sei Autocad, só sei de terreno. Mas você fica tranquilo que lá na construtora vai ter trabalho pra você, você é minha primeira opção. Quanto você tá ganhando aí? Novecentos contos? Tá louco! Eu consigo subir você pra mil e seiscentos. Como assistente de topógrafo. Lá eu mando em tudo, mando em todo mundo, até no patrão!

- ...

- Hein? Não, claro que eu não mando no patrão. Mas ele tem muita confiança em mim. É muito bom de trabalhar lá.

O sujeito desliga, olha pra mim, faz aqueles comentários básicos sobre os trocentos números que ainda temos na frente (eu, uns trinta; ele, uns sessenta), se sente à vontade e como gostei da eloquência dele vou dando corda. Ele morde a isca:

- Faz três dias que tô enfiado aqui tentando renovar o RG. Fiquei nessa fila toda [uma filha de 1h só para chegar na triagem], aí eu tinha esquecido o xerox, fui fazer a cópia e tive que entrar na fila de novo. Agora ainda por cima vou ter que responder um processo criminal, acho que vai demorar mais.

Eu arqueio as sobrancelhas. Puxa, é mesmo?

- É, faz três meses dois sujeitos chegaram assim para me roubar, um deles enfiou a mão no meu bolso, pegou a carteira com vinte e cinco reais e o RG e saiu correndo. O outro estava com uma arma. Eu sou capoeirista. Bom, era. Mas no que ele se distraiu assim um pouco para ver o outro correr, eu girei e ataquei ele, quebrei costela, quebrei braço, enchi o cara de porrada, peguei a arma dele e rendi ele, aí comecei a chamar um policial que estava ali perto e não tinha visto nada.

Ou fingindo que não tinha visto, acrescento. E ainda digo: O senhor viu que bonito, ontem no concurso da Miss Universo saíram uns capoeiristas na abertura, apesar de ser tudo coreografado, estava bonito.

- É. Faz muitos anos que eu jogava capoeira, agora não luto mais, mas a gente não esquece, não, continua sabendo. Então tive que fazer BO e agora estou sendo processado. Porque quando você sabe caratê, kung fu ou alguma arte marcial, eles consideram como se você tivesse uma arma. Mas não vou pegar cadeia nem nada, não. Só vou ter que ir lá dar explicação.
Aí ele me conta algumas façanhas de sua vida de macho capoeirista anterior, uma briga no forró mais de quinze anos atrás quando foi jurado de morte por três figuras, outra em que a parentela de Marília ficou com ciúmes porque ele paquerou uma moça bonita e quis partir pra porrada.

- É que eu sou um cearense arretado. Eu sei dar uns dois, três golpes letais. Mas está proibido usar em roda de capoeira. Senão, você mata o amigo. Hoje eu sou da paz, não quero confusão, sou um servo de Deus.

E assim tive minha aula de geopolítica popular particular e pude atualizar o sistema operativo para (re)encontrar algumas conclusões. De que o país realmente tá bombando no setor da construção civil (profissionais, aproveitem antes de que a bolha estoure). E a lentidão das burocracias e da máquina pública, aumentando. De que a vítima do assalto acaba processada pela incompetência da polícia e o malandro continua solto. E de que as igrejas evangélicas continuam arrebanhando fiéis. Tudo isso regado a forró e capoeira, mais verde-e-amarelo, impossível.

Conclusões muito fáceis e superficiais, eu sei, eu sei, mas que de alguma forma têm um pé na nossa realidade.

São perfeitas, isso sim, para você continuar a conversa com aquele pai do seu amigo que veio reclamar da corrupção no governo. Agora tenho lamúrias fresquinhas e atualizadas, vivenciadas em primeira mão.

Darling Darling, happy to be back to Brazil.

4 comentários:

  1. Bem vinda ao Brasil querida!!! Acho incrível poder observar e ouvir pessoas nessas situações do cotidiano...na correria...
    Fiz um trabalho fotográfico no Mercadão (Centro) e me lembro de como foi interessante as coisas que ouvia. Olho as fotos e me lembro até hoje da fala das personagens.
    Adorei o texto!
    bjo

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  2. Adorei perfeito!

    http://cosmeticosbelezasaude.blogspot.com/

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  3. Gostei tanto do “Mando até no patrão... não, no patrão não mando não” Ai ai essa vida é tão plena de poesia,mas só vc pra ver isso na fila do Poupa Tempo!! Aaaah então é lá que os nosso empreiteiros estão quando somem e não aparecem na obra? Aah então tá, tá desculpado!
    Mirabelle

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  4. Que delícia poder "aproveitar seu tempo" espiando uma janela de vida aberta ali do lado... bem Brasil mesmo.. rs

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